MONGINHICES

por Julieta Monginho

escritos, escrituras, escriturices

Escritora


AUTORETRATO

Magra, olhos castanhos, cantilena

Herberto na adolescência já madura.

Triste de casta, o mesmo de leitura,

feliz no devaneio, madalena.


Incapaz de fingir, sem dura pena.

Atenta no amor. Justa loucura

de procurar irmãos na rua escura,

de descobrir sinais na voz pequena


Teimosa buscadora de verdades

(digo, de uma só, somada em cento).

Descontente da vida e das cidades.


Eis aquela onde a luz apaga o vento

que a si mesma cobrira de vaidades,

num dia confitado em fogo lento.










Livros publicados

Juízo Perfeito (1996)

A Paixão Segundo os Infiéis (1998)

À Tua Espera (2000)

Dicionário dos Livros Sensíveis (2000)

Onde está J? (2002)

A Construção da Noite (2005)

A Terceira Mãe (2008)

Metade Maior (2012)

Um Muro no Meio do Caminho (2018)

Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio (2021)

Prémios

Máxima de Literatura (2000)

PEN narrativa (2018)

Fernando Namora (2018)

Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB (2008 e 2021)

o que é um #texto

O texto é o contrário do pensamento resguardado. O que for grade, o que for muro, o que for tinta a embotar a liberdade das coisas obscuras, interditas ao bom correr dos dias, desaparece quando a língua se insinua. 

Um texto não é um funcionário, 

Um texto não é a correcção. A língua tem direito a insubordinar-se, a cair das nuvens e a misturar-se com a terra sempre que lhe apeteça. 

Um texto não serve para nada, não é servil, não é prepotente, aguarda, com ou sem paciência que o descubram.

Um texto não obedece. Um texto não segue. Um texto ou rasga ou é rasgado.

A ladainha do texto não é uma oração, nem uma sucessão de regras.

As regras não pertencem ao texto, estão antes e depois.

Não percebo o suficiente do texto – este que sai dos meus dedos – para lhe atribuir um sentido preciso. Mesmo o sentido vago quer escapar. Faz bem. Gosto dele assim. 



Ela escreve e chama-me. Diz, perde os teus sentidos, não te ajudam a caminhar pela floresta. Lê o que a palavra esconde e destapa, como se abrisses os olhos depois de uma cegueira de mil anos, as pálpebras indecisas, vencidas pela luz. Aprende a leitura como se precisasses das palavras apenas para transitares entre universos ligados pelo desejo, corpo em estado de energia pura. Ou como se nem precisasses das palavras e perguntasses sem parar, para que servem? Para que servem, se é tão fácil sobreviver sem elas para saciar a fome, a sede, o sono, apenas com um choro ou um sorriso, um abanar de cauda, uma respiração.

As palavras são em vez de quê? Ou existem como todos os outros seres, criando o seu próprio corpo, o seu lugar, o texto seu?

Então ele disse-me que nunca poderíamos ficar juntos.

- Somos iguais um ao outro, como se tivéssemos nascido do mesmo pai e da mesma mãe, seria um incesto.

E eu pensei que o incesto não é crime e que se castigo houvesse valia a pena suportá-lo. Mas como reagir a tamanha sensatez?

Era julho. Os cubos de gelo flutuavam no gin e eu fixava-os atentamente, tentando apreender o processo de dissolução, até haver só um líquido qualquer dentro de um copo qualquer numa vida qualquer.

Disse-lhe ainda que, ao contrário dele, odeio o sabor da bebida misturada com gelo derretido, já era uma diferença. Ele não respondeu.

Com os dedos, fui tirando do copo os cubos de gelo, um a um. Fiquei a vê-los formar uma pequena lagoa no chão.

Essa história é verdadeira, pergunta a Jó.

Numa história podes puxar por uma ponta da verdade, nunca encontrarás a outra ponta. (*)


O PAI HORIZONTAL

Retalhos. Cromos que coleccionei quando menino, Eusébio, Coluna, os não sei quantos violinos dele. Eu e o meu pai, morto.

Eu e o meu pai, mortos.

Não falámos, ele porque não queria, eu porque estava só a existir, a tentar aprender o meu nome.

Numa mesa, o corpo imóvel, eu, a rosa na jarra, a minha mãe ainda uma velha bonita. Ontem, há pouco mais de dois minutos.

A rosa murchou no seu riso de dama antiga, galante, aprisionada num caminho sem vento.

Como podia eu progredir sem vento algum, sem aprender o meu nome?

Dizem que isto é memória. Dizem, porque o tempo os equivoca. Baralha consoantes e vogais numa palavra indizível. Tempo igual a palavra intransmissível, de mim para mim.

E mais dizem que quando são precisas as palavras não chegam. Não há palavras, dizem, perante a dor. Mas há. Uma delas é a palavra tempo, a que existe em mim e em mais ninguém, sem que os minutos perturbem a ferida.

A mãe ainda bonita e pálida, ainda de mãos mais que vazias. Mãos vazias contemplando o buraco. Dizem que um túnel e que há sempre luz ao fundo, ínfima luz, sempre ao fundo, sempre afastada o suficiente para em vez de tempo se chamar esperança.

Nico, chamava a mãe. Nico, anda cá, ainda cabes no meu colo. Seria o meu nome? Aquelas sílabas, uma palavra breve, à beirinha do túnel?

Dava um passo, o colo à espera, as mãos vazias tentando ver para além do buraco. Nico, o paizinho. O paizinho.

O pai horizontal. Nunca, quando me pediam para o desenhar, me ocorreu desenhá-lo assim, paralelo ao chão. Punha-lhe a cama à medida do corpo, um tapete por baixo, a mesa de cabeceira ao lado, com um candeeiro em vez das velas que chamavam as rezas. Punha-lhe uma janela, uma luz, ao fundo do túnel. Seria fácil desenhá-lo assim. Nunca me ocorreu.

Os dois a tentar existir, ele enquanto memória, insistindo no significado do tempo, eu enquanto nome. Nico. O colo à minha espera.

No Morro da Providência, num século qualquer, Dona Rosiette olha-nos, sorrindo. Diz

- a gente tem fome de leitura. Então eu levo oitenta dias a preparar o Carnaval e não posso levar oitenta dias para ler? Aprender é uma conquista.

Não é o tempo, aqui, que nos comove com os seus enleios.

Diz mais, Dona Rosiette

- são as nossas vitórias, a primeira escola de samba nasceu aqui, agora me botaram para autografar livros.

O livro é uma recolha de fotografias de olhares femininos nos lugares esquecidos. Além do Morro da Providência vamos dar com eles em Kibera – Quénia –, Deli e numa aldeia do Camboja. A mulher que nos fala desta aldeia faz um poema involuntário. Diz

a minha caneta era o meu martelo grande/o meu caderno era a pedra grande onde se partiam as outras/as folhas do meu caderno eram a natureza/e é nessa universidade que participo hoje nos debates sobre questões de género.

Os olhares viajam em fotografias gigantes, que cobrem comboios e autocarros em movimento. O nosso olhar tenta acompanhá-los, seguir o movimento. Mas acaba por perdê-los, se o corpo ficar quieto. Se o corpo ficar quieto, perderá os olhares, o norte, o sul e a vontade, entregue à sombra de si mesmo. (*)

(*) a partir do documentário Women are heroes, do fotógrafo itinerante JR. A ver também o documentário do mesmo autor com Agnès Varda - Visages Villages.


NÃO HÁ RAPAZES FEIOS

Voltei a Umberto Eco e à sua História do Feio (Difel – 2007) para apurar a minha percepção sobre o modo como se relacionam os dois opostos estéticos – beleza e fealdade – nesta época em que a competição é o modelo e a imagem o seu instrumento. Eco assinala três categorias: o "feio formal", o "feio artístico" e o "feio em si mesmo", este último ligado especialmente à fealdade física.

Deixarei em sossego as duas primeiras, entretidas nos debates sobre a desarmonia, a maldade, o macabro, as teses criminológicas de Lombroso, o gótico, o decadente, a distorção. Vou directa à terceira, não sem tomar balanço, que o assunto é delicado. Falarei de monstros, sapos, príncipes, corcundas, maçãs envenenadas, selfies e ortodontia.

Está em curso uma revolução silenciosa, que vai tornando incompreensível o imaginário das histórias tradicionais. Séculos de braço de ferro entre os humanos e a natureza vêm superando injustiças escritas nas estrelas, a uma velocidade inaudita, em movimento uniformemente acelerado. Nos últimos tempos o movimento virou remoinho, beleza e fealdade já não são o que eram, e não porque os padrões tivessem mudado em demasia: as pestanas reviradas, os ombros largos, os olhos de amêndoa e a cintura fina continuam imbatíveis. A novidade é que todos podemos aceder a tais atributos na imagem que projectamos. O que vem acontecendo é a supressão do feio, não por força da fogueira, do amor ou do estilo, mas por força do engenho corrector.

Sim, a dicotomia beleza/fealdade continua a ser uma questão de vida ou morte. O ímpeto excludente dos humanos no seu viver comum, ligado à disputa de territórios favoráveis, não poupa os que a injusta natureza marcou com a fealdade.

Sim, o destino do feio Hefesto, arremessado do alto dos céus pela mãe Hera, depois traído por Afrodite, e o destino de Apolo, o belo, que Homero eternizou no seu hino, prolongam-se na divergência entre a sina dos mortais e a do beautiful people, mesmo que as redes sociais nos proponham a fama ininterrupta.

Sim, continuando as observações de Eco, persistimos em tornar o feio um inimigo e em transformar o inimigo em feio. Foi assim com as mulheres atiradas à fogueira por bruxaria, foi assim com os judeus (e os ciganos, as pessoas com deficiência, os homossexuais) exterminados sob a notação de lixo por confronto com a pureza da "raça ariana".

À época em que o livro saiu (poucos anos depois da História da Beleza), falava Eco do triunfo da fealdade, alcançado através da mistura entre o que obedece a padrões tradicionais de beleza e o que os contraria, aquilo a que chamou o "politeísmo da beleza".

Pois bem, alguns anos depois, suspeito que a beleza aparente tenha recuperado a supremacia e destronado a fealdade. Para isso conquistou os ecrãs e, magnânima, pôs-se a atirar à audiência estojos de maquilhagem e salvamento. Para quê enquadrar os considerados feios em molduras de beleza rara se todos podem ser belos segundo o padrão dominante?

Já não é possível Bela amar o Monstro que esconde um Príncipe, porque nenhum encantamento é capaz de enfear alguém que aparece perfeito na capa das revistas (os monstros continuam a existir, mas sob a aparência de moços esbeltos, com bons cortes de cabelo). Já não é preciso beijar um sapo para que ele se transforme em príncipe, porque atrás do sapo se perfilam batalhões de príncipes à espera de serem beijados. Quasímodo, depois da cirurgia, pode aspirar a uma ligação carnal com Esmeralda. Já não é plausível o desencontro entre Roxane e Cyrano, pois este fez uma rinoplastia na adolescência. A madrasta da Branca de Neve e a madrasta da Gata Borralheira e todas as madrastas do mundo deixaram de ter inveja das enteadas, pois o charme dos cinquenta e o efusivo novo charme dos sessenta, aliados à reconstrução plástica do corpo, fazem delas boas amigas que se divertem a trocar roupa.

Desafio alguém a provar que nunca foi tentado por uma selfie e não tenha preparado a dentição para o momento. Ao contrário do que possa parecer, não foram as selfies que fizeram prosperar a ortodontia, mas o inverso.

Onde nos levará tanta beleza, não sei. Desconfio que nos vamos estampar num lago qualquer, como Narciso. Vai-se perdendo o encantamento, o poder da palavra, a importância do estilo e da inteligência, que arrebatavam tantos corações femininos (os masculinos sempre foram mais sensíveis aos atributos tradicionais), o jogo entre a aparência e o amor. Haverá que trocar de provérbio: a quem o belo ama, o feio não apetece.

O feio, decididamente, não apetece. O feio não tem lugar.

Os feios continuam a ser os inimigos, mas já não estão entre nós. Às vezes pedem-nos socorro, vindos de terras aflitas, do outro lado do mar. Porque haveríamos nós de os acolher? Para nos encherem os ecrãs de caras imperfeitas? Ora ora, não queriam mais nada.

MARCEL PROUST

Durante muito tempo, a miúda costumava deitar-se tarde. Deitar-se significava apagar a luz e escorregar pela cama, a cabeça na almofada, a espera pelo sono.

A mãe não subia as escadas para lhe dar um beijo de boa-noite. Não havia escadas. A madalena da miúda é o queque dos domingos de manhã, em qualquer café do mundo. Não me importo de lhe chamar agora muffin, só lamento que a massa e o tempo exacto de cozedura sejam sempre iguais e impeçam que algum fique tostado e crocante. Também sinto falta da uva-passa.

Deitava-se tarde por não conseguir parar de ler Proust. Prolongava a leitura transcrevendo trechos para cadernos cor de violeta, a letra redonda, entre o adolescente e o adulto. Os cadernos foram destruídos numa daquelas fúrias arrumadoras que maldizem a falta de espaço e o tempo por reencontrar. 

(excerto de Uma Biografia da Leitura, inédito)

25 d#abril, um dia

O que falta à memória é uma ventania repentina que perturbe o tempo. O que foi há cinquenta anos será, tanto o que exigimos.

Podemos começar assim: não respeitaremos a ordem de ficar em casa nem a vontade de ficar em casa. Usando os telemóveis, com o ânimo de estarmos todos a sair para o meio da rua, a revolução começa por volta das onze da manhã e nunca mais acaba.

À tarde pára de chuviscar, ficamos por aqui, à conversa uns com os outros. Há quantos séculos não nos encontramos? Ora reparem, então estes é que somos nós? Bem puídos estamos, roídas as carnes até ao fio do lombo. Da malinha viajante já só constam saudades (a palavra) e um pastel de nata. Andámos que tempos a dormir na forma, aos cuidados da Cristina e do PSI 20. Fizemos miséria, muita parvoíce. Mesmo aplicando-lhe um bom filtro e recorrendo à IA, a fotografia tem dificuldade em salvar-nos das figuras tristes. Por exemplo, a liberdade. Forretas como poucos, tanto tivemos medo de a ganhar que nos fomos habituando a perdê-la devagarinho, sem exceder o limite das nossas possibilidades, contas certíssimas, cidadãos, o passo menor que a perna.

O estado de direito custa para cima de um milhão de euros. O custo do estado de direito é incomportável. O custo de uma pessoa é incomportável.

A culpa é do excesso de expectativas dos portugueses.

A culpa é do excesso de importugueses.

São vozes que calam fundo. O excesso sempre foi um inimigo de respeito e o respeitinho, já se sabe, mais um SMO de última hora, dá de comer a nove milhões de portugueses. 

Olhemos então uns para os outros, agora que os cartazes vão abandonando o Largo do Carmo e os governantes se encaminham para o exílio que há muito, com negócios, conquistaram. Podemos descer ao cais das colunas, para ir molhar os pés. O rio da nossa aldeia contempla-nos, extasiado. Tanta gente com vontade de dançar, pensa ele. O que as fará desistir depois de três kudurus e um baile mandado? O sonho deles é apertar-me entre duas margens até me tornarem num riacho, só não o fazem para não perderem a enchente dos turistas.

Habituado a acordar de mau humor, o rio nem reparou que hoje somos diferentes. Hoje mandámos os mercados à caça aos gambuzinos e ficámos no solzinho primaveril a subir nos ratings da euforia como antigamente ao mastro dos navios, terra à vista, e pela cor da pele tisnada nos achámos.

O imenso litoral de um continente vadio, propenso a velhos rituais. A bem dizer nascemos na areia, como ervas daninhas; ou então demos à costa, conchinhas, pequenos búzios, os restos dos heróis. Passamos anos a chorar os que se perdem nas vagas, os que desaparecem na neblina. Anos e anos a perscrutar o horizonte, a avaliar a maré, como se não tivéssemos mais nada para fazer. Outros anos são passados a rezingarmos uns com os outros, nesta maneira de nos queixarmos e invejarmos em surdina, que aprendemos com os mártires.

Já íamos em quantos, outra vez? Quatro, cinco, dez anos, outro meio século em luto? Não faltava mais nada. Com este sol queremos ser turistas, queremos dançar no mundo com rosto visível, mil pares de sapatos levantando o pó, turistas de um país bárbaro, ameno, nosso.

Está bonita a festa, pá. E depois? Em cada rosto um amigo? Em cada esquina igualdade?

Depois não vão ser rosas, meu senhor, nem cravos, nem pães para os pobrezinhos. Os governantes a caminho do exílio, os do costume já a urdir novas ciladas, não vamos direitos ao paraíso. O sonho, obra humana que os deuses desdenham, abre o caminho mas não chega. O território, elevado a ruína monumental e protegida, também não.

Um lugar onde não se troquem palavras por gráficos nem pessoas por juros. Onde caibamos muitos, sem medo de serem mais e mais diferentes. Onde as fronteiras estejam tão ao sul que desapareçam do horizonte, língua viva, sotaques variados da liberdade livre. Cinquenta anos depois e depois de depois, o tempo retomado.

#abril #25abril #vinteecincodeabril

O AMOR EM VISITA

Na capa de O Amor em Visita, desenhei a tinta azul, por cima das letras T e O originais da palavra CONTRAPONTO (a editora do Luiz Pacheco) outro T e outro O. Talvez tenha considerado essa uma forma de desenhar palavras do livro, sem as reescrever. O livro gravou-se em mim, eu gravei o livro. Quando um dia, ingenuamente, o mostrei ao Leitor, ouvi o que dispensava ter ouvido e gravado nesta memória que me enlouquece

Isto não é coisa que se faça a um livro. Os livros são sagrados.

Sagrados uma ova, Leitor. Os teus dedos são plumas, os meus nasceram revoltosos, nunca se deixarão abençoar nem pelo Altíssimo Criador das Letras Vivas.

O Amor em Visita nasceu no ano em que eu nasci. Crescemos juntos, eu para o amar, ele para ser amado.

Magia, proclamei. Herberto concordou. Disse

É isso, miúda, e que se lixe quem não perceba esse fogo invisível a iluminar as feridas.

Depois chamou As Magias a um dos seus livros de versões: mudança para a língua portuguesa de textos vindos de outros tempos, outras paragens, viagens entre modos de ser e de dizer.

caçadeiras revólveres drones palavras mísseis fisgas pedras obuses facas palavras espadas bombas fundas arpões gás navalhas metralhadoras canhões catapultas bastões granadas 

palavras


Leitor é quem está disposto a ser perturbado, ou mesmo alterado, pela leitura um texto. Partir da sua literalidade e procurar outras leituras, de si mesmo e do mundo.

O leitor enquanto consumidor de livros não me interessa. Não estou no ramo do comércio de livros, sou uma simples autora.

Quando me falam em cerca de 30% de leitores, que suponho corresponder à percentagem de quem lê uma certa quantidade de livros, ao menos um por ano, penso que o cálculo peca por excesso. Desses talvez metade sejam verdadeiros e constantes leitores. É a esses que temos de mimar, com livros que estimulem o entusiasmo pela aventura de conhecer universos novos, através da palavra escrita.

Quanto aos não leitores – a grande maioria - só podemos tentar cativá-los. Seduzi-los. Tal como se seduz no amor, assim se pode seduzir na leitura.

Uma espécie de Tinder para a leitura, que é o que por vezes se tenta fazer com o livro enquanto produto, não nos leva muito longe. Pode proporcionar encontros breves e até felizes, mas geralmente não conduz a uma relação duradoura com a leitura. Neste caso os livros até podem estar alinhados em estantes, mas não formam uma biblioteca.

Pelo contrário, existem leitores, ou seja, pessoas que têm gosto em confrontar-se com textos inquietantes, que os procuram noutras plataformas. O formato do livro não foi sempre o mesmo, nada indica que permanecerá igual ao longo do tempo.

Para a sedução não instantânea de leitores são precisos sedutores competentes, que amem a leitura e conheçam os alvos da sedução.


O JACKPOTER

Certa vez a um mendigo saiu um jackpot, o que não seria extraordinário se ele não teimasse em repartir o prémio com todos os outros mendigos, conhecidos e desconhecidos. Na cidade europeia onde morava deixou de haver miseráveis e ainda sobrou dinheiro para se tornarem investidores e milionários, movimento que alastrou ao país inteiro, levando à queda do governo e à transformação dos ministros em empregados da única empresa nacional. Em breve, graças à persistência do primeiro sortudo, a empresa galgou fronteiras, engolindo as tecnológicas, as energéticas e as restantes. A paz e a justiça mundial foram garantidas em poucos meses, pois todo o globo passou a ser composto por bilionários em festa permanente. Uns anos depois, porém, já ninguém recordava a origem do dinheiro, nem para que é que servia, nem o que ambicionar. O primeiro cadáver foi encontrado, sem cabeça, no riacho que subsistia sobre a ruína do oceano Ártico e outros se seguiram, até não restar vivalma para os incinerar. A terra agradeceu a oferenda e renovou-se, novas plantas e vastos oceanos tomaram o seu lugar no planeta. A criatura que viajou, de norte para sul e de sul para norte, transportando incansavelmente as cabeças, de modo a que jamais se reunissem à viscosidade dos corpos, não era homem nem mulher, mas uma espécie sucessora, a quem ainda faltavam muitos séculos para encontrar um jackpot.


No mundo havia uma vasta planície dourada pelas espigas. A vastidão dividia-se em pedaços, alguns extensões que olhos humanos jamais abarcariam, outros rectângulos do tamanho de um pequeno campo de futebol, onde miúdos se entretinham em fintas, as balizas dois cestos para apanhar o grão. Num desses rectângulos, situada a sudoeste, havia uma casa, onde moravam a avó, o avô, a mãe, o pai e três crianças. O primeiro a desaparecer foi o pai, chamado pelo estrondo de arma longínqua. O segundo foi o filho mais novo, entretido na brincadeira de imitar o pai. O terceiro foi o avô, que ao enterrar o neto caiu no buraco, ao lado dele. A quarta foi a filha do meio, violada por um bando de inimigos que desceram do céu, dentro de um cavalo de metal. A quinta foi a avó, com um tiro na nuca, quando tentava tapar com o seu corpo o corpo esfarrapado da neta. A sexta desapareceu porque já não tinha nome.


Como na canção de Laurie Anderson

Over and over you're falling/And then catching yourself from falling/And tihs is how you can be walking /and falling/At the same time.

Na canção, alguém é procurado e nunca encontrado. Por isso quem procura, continua a andar

e a cair

a andar e a cair ao mesmo tempo.

Assim me sinto, metaforicamente sentada no sofá, pois o movimento é o único lugar a que pertenço.

E vou caindo, com estrondo, quase sempre, sem saber colocar o corpo de modo a que se magoe como um bailarino, não como bêbedo. Olho para a esquerda e sigo os nomes nas badanas dos livros amontoados a um canto do sofá. Empurram-me para o canto oposto e daí para o chão, de onde me chamam. Ocupam todo o espaço, até o que eu ocupo.

#laurieanderson 


A paz não encontro, a guerra não começo.

Tivesse eu vivido em …no século XIV e a esta inquietação podia chamar vida.

Existe um conflito. Sentes a necessidade de ser perfeito, pelo menos ao moveres-te.

Como se a pele dele sentisse a dor de morrer um pouco.

Por fim e desajeitadamente, liga ao David.

Sou eu, o Karl. Tenho pensado em ti ultimamente. Sabes, às vezes vou a Paris. Foi o que acabei de dizer. Ouve, eu ligo-te. Prometes-me? Está bem, então eu ligo.

Com a máscara de um urso toda a gente pode adormecer como um urso. Hibernar, como ele. Esperar que chegue o verão para ir a Paris.

Karl põe a máscara e adormece.

Nós corremos, enquanto os outros fazem o que ele faz.

O que ele faz é abraçar, dançando, movendo o corpo como se numa discoteca ou num ritual antiquíssimo, ao ritmo dos tambores.

Brevemente, o piano. Logo a seguir ele cai e ela diz vamos fazer o barco. Estão prontos?

O barco é um pano que precisa de vento, o vento está nos passos que dançam, agora ao som de um piano que não desistiu.

Sentia o cheiro dele nos corredores vazios, continua. A obsessão é passageira, mas quando se sabe já a duração fez o seu trabalho.

Éramos miúdos a brincar no palco. A música vinha dos risos, até que um deles caiu e todos tiveram de cair à volta dele, para se protegerem.

Quando saíram, chovia. Eram os anos de alguém.

Fique mais um pouco, beba mais um pouco. Se sair, eu saio consigo.

TODOS OS NOMES - JOSÉ SARAMAGO (excerto)

Todos os nomes é a história de um homem diante de si mesmo e do espaço opressor. Um homem que se vê ao espelho e observa: «Este não pareço eu, pensou, e provavelmente nunca o havia sido tanto». A identidade e a finitude são o trilho da demanda deste homem que se põe à prova, em actos arrojados, para descobrir, com um pastor, que a morte se expande ao redor da vida com uma persistência impossível de vencer, excepto pelo que cada um ousar enquanto vivo. Não que haja falta de sinais desse desfecho no universo em que se move – o da Conservatória Geral do Registo Civil, cuja descrição detalhada abre o romance, o escritor-Dédalo a preparar a descida ao mundo subterrâneo do Sr. José. Mas só quando aborda o mundo exterior o auxiliar de escrita começa a entender o interior. Imagina a leitora que também Saramago aprende com este auxiliar, que para tal foi criado, personagem que guia e ensina o escritor aprendiz.

Na sua busca insensata pela mulher do verbete, achado por acaso, há – imagina a leitora - um Quixote fatigado, cuja audácia está condenada à miséria e à ferida. O pensamento exige dele uma força que o corpo não comporta, frágil que é, exposto à doença, aos impulsos menos nobres que os planeados e ao definhamento.

Mas que razão o levou a encetar essa demanda?

Não há uma razão. A causalidade é quase um acidente supérfluo ao longo da narrativa. Assistimos à sequência de movimentos cuja lógica se confina entre o anterior e o seguinte, mas que, no seu conjunto, não constituem um nexo fechado, a busca é o próprio objectivo, é infinita.

«Em rigor não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós», reflecte o narrador, ou a voz autoral de Saramago.

Até ao momento da infracção, o da «iluminação que iria transformar a sua vida», aquele em que abriu pela primeira vez a porta proibida (a que separa a sua casa da Conservatória Geral), o Senhor José coleccionava recortes de pessoas famosas e vivia tranquilo no seu lugar anónimo, respeitador da ordem da qual a Conservatória é o repositório e o garante.

A leitora não consegue impedir-se de associar esta porta à porta da Lei, de O Processo. Nessa parábola, a porta estava aberta mas o guarda diz ao homem do campo que é proibido entrar. O homem espera então, pacientemente, que o guarda lhe autorize a entrada. Quando, minguado e moribundo, volta a interrogar o guarda, este revela-lhe, como um segredo ao ouvido: «Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a».

São ambas portas para uma ordem burocrática – a da justiça, a da arrumação e catálogo de todos os vivos e de todos os mortos – e ambas permanecem interditas durante anos apenas porque essa interdição foi interiorizada por quem espera aceder-lhe.

Aqui acabam as similitudes. Saramago dá uma feição totalmente nova à parábola, quer aprofundando o carácter subjectivo da interdição quer, sobretudo, movimentando a sua personagem no sentido transgressor.

Transgredir e aproximar-se do perigo e das suas consequências passa a ser o mote e o próprio sentido da vida do Sr. José. Na busca pela mulher do verbete, é um outro Sr. José que se revela. Da mulher pouco mais saberá, a não ser que foi capaz da única forma de ludibriar a morte, que é antecipá-la. Acerca de si ficará a conhecer mais do que conhecera em toda a sua vida, e mesmo assim tão pouco.

#saramago #todososnomes #autoresportugueses #nobelliteratura #nobelliteraturaportugal



NÃO HÁ PALAVRAS OU NÃO HÁ DIREITO?

É quando dizemos «não há palavras» que elas são mais necessárias.

O indizível procura expressões num precipício sem amparo ou em gritos audíveis, capazes de mover montanhas.

Chegará a hora desse fundo sem luz onde as palavras parecem nascer como se nunca pensadas. Por enquanto, é a hora de as convocar para que o clamor seja mais forte que a queda na desumanização.

Assistimos, impotentes, ao massacre. Assistimos ao colapso do direito, sem perceber como chegámos à ruína e estamos prestes a caminhar por entre escombros.

Nem falo já de justiça, palavra sacrificada à voragem dos factos transitórios, trôpega imagem de uma ideia irmã da beleza. Falo de um edifício-abrigo, última instância ética de uma convivência entre humanos que se dizem iguais.

Que é do poder coercitivo do direito internacional, exíguo, é certo, mas, neste momento histórico, inexistente?

Que é feito da simples enunciação do direito internacional humanitário?

Ou a ONU se dá por extinta ou existam mecanismos que a refundem.

A história olha para nós de boca aberta. Espanto, exigência, clamor secreto?

À história não faltarão palavras.

#gaza #genoocidio #ceasefirenow

soneto vegetal

Não sei se viva ou sinta simplesmente

se sentir é questão ou aventura

se vivesse num quadro era pintura

se me sentisse cor seria gente


Irritada planta, mulher finda

quantos passos daria? Vão caminho.

Sentada no sofá de verde pinho

invejo a flor consigo desavinda


Não sabes ao que vens? pergunta o dia,

pergunta o tempo fasto, duvidoso.

Cada segundo canta uma alegria.


A voz ao alto, então, porque não ouso?

Porque sentir é vária sinfonia.

Enche-me o corpo um vento deleitoso.

DAVID

Uma escada branca dá para o quarto da criança.

Na telefonia passa uma canção de Natal, uma voz que não reconheço, um bom trinado.

A criança está sentada na cama a olhar para a casa de brincar, com cortinas, toda vermelha, um palco.

Pretende habitar aquela casa, encantar a mãe, fazê-la rir.

Cresceu assim, muito loiro e sonhador, o David.

Quando for grande, começavam sempre as suas histórias, aquelas com que pretendia fazer a mãe sorrir. Quando for grande, continuou a cantar, mesmo já crescido, o rapaz mais bonito da cidade. A mãe sorriu, sim, ele conseguia surpreendê-la nos momentos mais difíceis, com as suas brincadeiras, os seus disfarces de bailarina e de astronauta, um balde na cabeça. Com a sua voz, que era a voz quebrada do anjo Gabriel, nada que se parecesse com a do cantor do Natal anos atrás, na telefonia.

Quando encontrou a rapariga que gargalhava com as suas peripécias, casou com ela. Ela ajudou-o com a guitarra, ele pegou no microfone. Quando for grande, cantou e pantominou com tal graciosidade que em breve cantava nas telefonias e nas televisões do mundo.

A mãe morreu.

O cão morreu.

As árvores secaram com o outono, eram braços moribundos erguidos ao céu.

A mulher tornou-se bailarina e afastou-se, a dançar, para um país distante.

David já não podia ser David. A voz, a música, a casa encarnada, continuavam ali, ele era outro. Fechado na sua nave espacial, subiu ao céu, não como Gabriel, mas como Tom. O mundo ficou mais estarrecido que encantado. Desviou os olhos. Ninguém gosta de olhar a solidão do outro, bem se percebe porquê.

Subiu e desceu sozinho, ninguém o ajudou. A não ser as árvores, já me esquecia das árvores. Aos braços erguidos tinha chegado a primavera, ficaram macios, o chão também.

Quando eu for grande, voltou a cantar, até perceber que tinha crescido e tinha de arranjar uma guitarra mais pesada. Guitarra, teclas, microfone, o cabelo em caracóis sobre os ombros, tudo ficou mais pesado e mais rebelde.

A quem iria desvanecer agora? À mãe, às namoradas, ao mundo? Não queria desvanecer ninguém. Só perceber por que razão tinha crescido. Encontrar-se consigo, não num momento, mas no tempo que ainda estava para vir. Viria?

O teatrinho de fantoches, a telefonia, o Natal, o anjo Gabriel, tinham desaparecido. Evaporado. Quando foi ver deles, já não estavam lá.

Não havia outro remédio senão nascer outra vez. Nascer para si próprio, as luzes e a cor vermelha, tudo dentro dele, tudo a brilhar em torno da sua voz.

#davidbowie #letsdance


MRS. DALLOWAY (Virginia Woolf) e ULISSES (James Joyce): um diálogo?

Existirá um diálogo entre Mrs. Dalloway e Ulisses? Um diálogo de surdos, talvez, um contraponto que Virginia quis opor, talvez. Não uma improvisação sobre uma obra anterior, mas, porventura, uma forma de reflectir sobre a reacção possível à estranheza que Ulisses (publicado em 1920) representara. Uma forma feminina e londrina, em que a sobriedade não constitui obstáculo à criatividade nem à profundidade da corrente de consciência, de responder à exuberância masculina, rude e irlandesa, de Joyce. Ou nada disto.

Virginia teve acesso ao manuscrito de Ulisses antes da sua publicação, pois foi proposto à Hogarth Press, editora que fundara com o marido, Leonard Woolf. Apesar da recusa, justificada por motivos técnicos relacionados com a duração da impressão, os primeiros quatro capítulos foram lidos e reconhecida a sua natureza revolucionária. Na entrada de 16 de Agostro de 1922 do seu Diário, Virginia dá conta de que leu duzentas páginas de Ulisses, elogiando os «2 ou 3» primeiros capítulos e criticando severamente os seguintes. No mesmo dia fala sobre a escrita de Mrs. Dalloway e de como não gosta da sensação de estar a escrevê-lo com demasiada rapidez.

A ligação entre as duas obras parece evidente desde as primeiras páginas de Mrs. Dalloway. Clarissa mergulha nas ruas de Londres na manhã do dia em que, à noite, dará a sua festa. «Nos olhos das pessoas, no bulício, na pressa e na lentidão; no bramido e no tumulto da multidão; nas carruagens, nos automóveis, nas diligências, nas carrinhas, no passo arrastado ou vacilante dos homens-sanduíche; nas fanfarras e nos realejos; no esplendor, nos tinidos e no estranho, estridente cantar de um qualquer aeroplano lá no alto, em tudo isso se encontrava aquilo que ela amava; a vida; Londres; aquele momento de Junho.

Pois estava-se em meados de Junho».

Meados de Junho, um só dia contado desde a manhã até à noite. Em Ulisses é contado o dia 16 de Junho de Leopold Bloom, o Bloomsday.

Mas que contraste entre os dois. Não só a personagem principal é uma mulher, com os seus pensamentos de dona-de-casa semelhantes a todas as outras («e agora, já não era capaz de dizer a respeito de Peter, a respeito de si mesma, eu sou isto ou eu sou aquilo»), como deambula por uma Londres cujas características cosmopolitas Virginia faz questão de acentuar, o Big Ben a bater As Horas, cada hora.

O diálogo/duelo parece ter sido procurado pela autora. A primeira frase do livro já traz implícita a festa que ocorrerá nessa mesma noite. Enquanto o título do romance do Joyce remete para o herói da Odisseia, com o qual Bloom contrasta, o do romance de Virginia assume a perda de identidade da personagem principal - inerente à condição da mulher - ao tomar o apelido do marido: «sendo apenas Mrs. Dallwoay; já nem sequer Clarissa; sendo tão-só Mrs. Richard Dalloay.»

Joyce e Virginia, os dois maiores escritores do modernismo da época entre guerras, nasceram e morreram no mesmo ano. Mas os pontos de vista de ambos, ou os olhares com que os vemos um século depois, são frequentemente assinalados como erros de paralaxe.  

#virginawoolf #jamesjoyce #mrsdallwoay #ulisses #bloom #clarissa

as mãos indecifráveis

Não conhecem, os homens, o sabor sereno da audácia.

Do medo apenas sabem a fúria de avançar esmagando a terra, perdendo a lucidez.

Usam as armas para esconder as mãos nuas, as mãos indecifráveis voando sobre o precipício. As armas são as arestas dos penhascos que constroem para terem o que agarrar, em desespero, antes da queda.

Possam as tuas mãos proteger-te das ideias letais, do medo disfarçado, do engano imortal, da fuga para o vazio. Da falha que induz a crueldade.      



Ergueu-se a guerra sobre a tua beleza

coroa de rubis e ervas venenosas

como podia ter-se erguido sobre

uma palavra

uma ideia lisa

um punhado de pedras

Não tendo os homens pretextos ingénuos para a vida,

fabricam-nos, engenhosamente, para a morte.

Derramam as sementes com o seu próprio sangue,

inebriados pelo cheiro misterioso

do sangue feminino.

Recorrem a armas pontiagudas para criar

o seu próprio mênstruo

o incêndio possível.

Não feches as janelas

não cubras os espelhos

com as tuas lágrimas

não os embacies

com a tua dor.

Não queiras, sobre a pele,

nem lírios nem panos

mergulhados em tinta púrpura.

Não se mascare o tempo

com a tua cabeleira enlouquecida.

Os anos e os heróis verão a história

com olhos decepados

Nos teus olhos há uma luz a iniciar-se

todos os dias.

O melhor da água é o espelho/verde. A espuma mansa/ a pista de seda/que os olhos alcançam//Melhor é a dança das rosas/despertas ao sol. E a esperança/de ser água e correr por dentro/de todos os sonhos - António Monginho

#antoniomonginho #autoresportugueses #poesiaportuguesa

agora

chegar aqui

deslizando para a velhice

as décadas passadas

sem nunca ter conhecido uma pessoa

realmente má

sem nunca ter conhecido uma pessoa

realmente excepcional

sem nunca ter conhecido uma pessoa

realmente boa

deslizando para a velhice

as décadas passadas

o pior são as manhãs.



#bukowski #americanwriters 


luz quente

sozinho

esta noite

aqui em casa,

sozinho com

6 gatos

que me dizem

sem

esforço

tudo o que

para saber


DOIS POEMAS DE CHARLES BUKOWSKI - TRADUÇÃO

MÃE 

Ardem no chão as folhas. Ardem nas folhas as nervuras simétricas das tuas duas mãos. Ardem nas tuas mãos os aromas propagados pela casa ardente: a tampa da panela entreaberta, o vapor, os cheiros milenares da terra fértil. Ardem no caminho os passos mínimos entre o sonho e a casa. A um canto, no chão, protegida pelas paredes ardentes do teu gigante corpo, adormeci.

VIAJAR

Abrir o mapa e escolher a cidade. Saber que a escrita e a leitura não serão as mesmas conforme o lugar onde acontecem. Não me importar com isso, pelo contrário. Deixar entrar a língua, a entoação, a forma de viver em conjunto.

Lembrar os grupos de meninas muito maquilhadas de Dublin e as que entram num bar onde os géneros quase não se misturam em Inverness. Os grupos mistos num café a abarrotar em Estocolmo e nas praças e ruas de Oslo. As mulheres de minissaia em Istambul e as mulheres de abaia em Istambul.

Os cabeleireiros de cave em Budapeste, uma cabeleireira, uma cliente, nenhuma vaga. O cabeleireiro ultramoderno em Varsóvia e o único que encontrei, caríssimo e sem marcações, em Riga.

Esquecer que existem praças enormes em Nápoles e transitar pelas ruelas, reparando no nome das diversas vias, na escuridão do labirinto, da qual inopinadamente ressaltam brilhos no peixe acabado de pescar e na vozearia própria dos mercados de rua, que evoca a do mercado de rua de Buenos Aires, com a roupa interior exposta em gigantescos mostruários e a do mercadinho do Mindelo, onde as crianças tomam biberão atrás dos sacos de batatas.

A venda ambulante, nas cidades pobres, os carrinhos de hot-dogs em Nova Iorque e as filas para o único carrinho em Reikjawick, a água de coco em Salvador e a água de cana em Santo Antão.

Abrir o mapa. Seguir um percurso com o lápis. A mala cheia de roupa que há-de voltar cheia de livros.


AINDA A LITERATURA E O DIREITO: SÁ DE MIRANDA

Sá de Miranda viveu entre 1481 e 1588. Era utriusque iuris doctor, doutor em ambos os direitos – direito civil e direito canónico. A ele se deve a introdução, na língua portuguesa, das formas métricas do soneto e da canção, da terzarima, da ottavarima, do frottolato, do processo de polimetria e de várias combinações estróficas. [1]

Um poema:

Comigo me desavim,

Sou posto em todo perigo;

Não posso viver comigo

Nem posso fugir de mim.

Com dor da gente fugia,

Antes que esta assim crescesse;

Agora já fugiria

De mim, se de mim pudesse.

Que meio espero ou que fim

Do vão trabalho que sigo,

Pois que trago a mim comigo

Tamanho imigo de mim?

Este poema espelha a contradição do «eu» que fala, os dois lados de uma contenda que não existe só no exterior, mas começa – e talvez acabe – no próprio pensamento. Porque não ligá-lo à função judicial, em que o «eu» decidente se depara com dois lados opostos e se divide a si mesmo para poder aferir qual deles se aproxima mais do justo? Ou à função do Ministério Público, não só enquanto defensor do princípio da legalidade mas também quando, representando os interesses difusos ou um em particular, deve escutar em si a voz da contradição, para escolher o como, o quando, o até onde.

Segundo a professora Rita Marnoto, no livro intitulado As Palavras Justas _, as novas formas poéticas daquela época, introduzidas por ele em Portugal, foram protagonizadas na literatura italiana por escritores juristas. A estrutura precisa do soneto, a invenção no registo da glosa, muito terão ficado a dever à forma como se estudava e aplicava o direito. Por exemplo, a enunciação de uma frase perfeita, como tema dado a interpretar, a desenvolver e mesmo a contradizer, para afinação do pensamento jurídico, estendeu-se a outros temas, dando origem à glosa a partir de um mote.


[1] Rita Marnoto, Francisco Sá de Miranda, «clericus colimbriensis civitatis, utrusque iuris doctor», em As Palavras Justas, Centro de Literatura Portuguesa – Faculdade de Letras de Coimbra.

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